Ele estava ali
Ali no colchão
Uma mão na garrafa de vinho
A outra sobre o celular
As pernas cruzadas fazendo um "4"
Tocava ao fundo uma sonata no modo "Repetir"
O sol entrava sutilmente pela janela entreaberta junto com a brisa da manhã
Algumas folhas estavam no chão do quarto, trazidas pelas noites chuvosas
Eles entraram lentamente chamando seu nome
Sem resposta, foram entrando pela sala
O viram no quarto
Um grito
E lágrimas
E incerteza de saber se iam até o cadáver putrefato ou se fugiam dele
Ir até o que já se foi?
Para quê?
Quanto mais eu respiro, mais sem ar eu fico
Não vejo nada direito
Não sei mais quem eu sou
Não sei mais aonde estou
Não sei de mais nada
Só sei que a escuridão me preenche
A última coisa que me lembro é que me deitei... e depois... mais nada
NADA
Apenas um vazio que me preencheu como nunca antes
Apenas um vazio
Um silêncio
Um NADA
Um... vácuo?
O ar isento de ar?
O ar isento de tudo?
Para onde estou indo?
Será que já cheguei?
Será que já estou pronto para partir?
Será que estou pronto para qualquer coisa além de mim?
Qualquer coisa além de existir?
Me levanto
Tenho certeza que estava deitado
Tenho certeza que estava dormindo
Agora a luz chega até mim
A luz que me tranquiliza
A luz que me guia
A luz que me tira da cama e me dá forças para levantar e seguir adiante
O que é esta luz?
Será que me guia para um novo começo?
Ou me guia para o meu fim?
...
Está bem quente aqui
Talvez quente demais para ser um começo
Ou melhor
Deve ser o começo do meu fim
O ventilador fazia o barulho constante e perfeito
Perfeito para o sono
Perfeito para a paz
Fazia o suspiro do ar da noite refrescar o corpo quente sobre o lençol
Os olhos Se fecham
A respiração fica lenta
O corpo esfria
A alma acalma
As luzes se apagam
A cidade se desliga e o som permanece
Permanece, mas desaparece
Lentamente
Tão levemente quanto ela me toca
Me toca o cabelo
Me toca o rosto
Me toca o queixo
Ela se aproxima e sinto o gelo de sua respiração em meu pescoço
Ainda não estou acordado
Mas estou acordado
Não consegui dormir, mas já estou dormindo
Seus dedos gelados se arrastam sobre minhas bochechas fazendo o carinho da morte
Ainda dormindo, porém acordado, sinto um líquido quente escorrer em minha garganta
Mas estou de boca fechada!
Por onde entra?
Será que entra?
Ou sai de dentro?
Não é só líquido
Tem pedaços
Pedaços duros e grandes
Minha garganta dói
Estou sem respirar
Estou engasgando!
Abro os olhos e vejo ela pairando sobre mim
Ela respira em minha boca!
Ela segura meu rosto e eu não consigo me mover!
Meus dentes escorrem pela minha garganta junto com meu sangue e eu não consigo respirar!
Não consigo tossir!
Ela me força a puxar o ar e tudo entra em meus pulmões!
Sangue! Dentes! Seus dedos!
Ela grita e meus ouvidos sangram!
Meus dentes me cortam e me trituram!
Estou respirando meus dentes e meu sangue!
Não consigo me mover!
E ela grita e ri!
Está festejando!
Festejando minha morte!
E assim eu vou
Vou embora enquanto ela pega meus dentes e coloca em sua própria boca
Era só isso que ela queria
Só queria sorrir durante a minha morte
Só queria sorrir com meus dentes